Artigos de Associados

Violência contra a Pessoa Idosa

Maria Joana Barni Zucco

 

15 de junho – Dia Mundial de combate à violência contra pessoas idosas. A instituição desta data serve para alertar a sociedade sobre esta vergonhosa realidade: as pessoas idosas são vítimas de inúmeros tipos de violações de direitos todos os dias pelos mais diversos agentes.

Este artigo tem o objetivo de chamar a atenção para a identidade dos agressores.  Além de familiares, cuidadores e outros agentes da vida privada das pessoas idosas, comumente apontados como responsáveis pela violência contra essas pessoas, é preciso reconhecer outro agente, tão ou mais agressivo ao bem-estar físico e/ou emocional do idoso: o Estado, quando sonega direitos pela ausência ou inadequação das políticas públicas.

O governo federal deflagrou, em 04/12/2020, a Operação VETUS, de busca, apreensão e prisão dos agressores denunciados pelo Disque 100 em todo o país, a partir do Dia Internacional do Idoso, 1º de outubro do ano passado. Foram mais de 10 mil denúncias em dois meses.  Com essa Operação, o poder público tentou dar uma resposta nacional a este tipo de violação dos direitos da pessoa idosa. Quase 500 agressores foram presos, além de outras medidas protetivas.

Com termos semelhantes, esta notícia circulou em jornais, chamadas de noticiários televisivos e em diversos sites da internet. Para além da “resposta governamental”, a notícia escancarou o fato de que a violência contra pessoas idosas cresceu em 2020.

O stress vivido por cada brasileiro – que se viu, para além do COVID-19, envolvido numa “pandemônia” política e econômica – acabou, muitas vezes, em depressão, em suicídio ou em violência contra outras pessoas, dentre as quais as mais frágeis: os idosos da família.

No início da Pandemia do COVID-19, com as medidas de isolamento social, houve convivência forçada de famílias numerosas em espaços restritos; como precaução necessária, houve, também, recomendações médicas e governamentais para que os idosos não saíssem de casa, afastando-os de tudo o que se pregava em busca de uma velhice ativa e saudável. Foi e continua sendo doloroso – sem distinção de classe socioeconômica – o isolamento daqueles que moram sozinhos e não mais se encontram com amigos, filhos e netos, assim como a proibição de visitas a idosos que residem em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Por outro lado, em especial dentre a população mais pobre, abateu sobremaneira as pessoas idosas a preocupação com familiares desempregados sem condições de garantir a própria sobrevivência. Além de tudo isso, as trágicas estatísticas mostravam a enorme fragilidade das pessoas idosas contagiadas, muito mais suscetíveis à morte ou a graves sequelas em consequência do COVID-19. Essas e tantas outras circunstâncias trouxeram dificuldades econômicas, físicas e emocionais, ainda que em graus diferenciados, para toda a humanidade, mas com consequências mais contundentes para a população idosa.

Os mais velhos são triplamente vítimas da pandemia: biologicamente, por serem mais vulneráveis aos seus efeitos como gravidade da doença e mortalidade; emocionalmente, em especial pelo medo da doença, mas também pelas outras consequências psicológicas; socialmente, já que a eles o isolamento social tem sido mais duramente imposto. E, neste contexto de restrições de todas as ordens, cresceram, também, as situações de violência familiar contra pessoas idosas. É, pois, importante que o governo se preocupe com isso e aja, como o fez!

Contudo, cabe aqui uma reflexão sobre violência contra pessoas idosas, seja em tempos normais, seja neste momento da Pandemia. Qual a verdadeira identidade dos agressores?

Temos ouvido, de longa data, que a violência contra idosos é silenciosa, porque protagonizada por familiares, cuidadores e outros agentes da vida privada dessas pessoas. Entretanto, esta não é toda a verdade. Grande parte da violência sofrida pelas pessoas idosas – seja em tempos ditos normais, seja nesta Pandemia – decorre da sonegação de políticas públicas adequadas e suficientes oferecidas pelo próprio Estado, em todas as instâncias.

Refiro-me ao Estado, em sentido genérico – ou o poder público em todas as esferas e áreas de poder –, o qual, por ação ou omissão, vem cometendo historicamente violências diárias contra pessoas idosas! E não apenas em época de Pandemia. Sim, este mesmo Estado, este mesmo poder público que deflagrou a Operação VETUS, prendeu e puniu muitos agressores domésticos, é, também, um constante agressor da população idosa mais vulnerável. Isso porque o Estado torna-se um agressor sempre que negligencia o cumprimento da legislação protetiva à população idosa.

As pessoas idosas são violentadas nas intermináveis filas para atendimento médico-hospitalar – “filas” físicas, de madrugada, à porta dos centros de saúde, e “filas numéricas”, criadas pelas centrais de regulação, cuja posição sobe e desce diariamente, para o sofrimento constante da pessoa idosa, que vê a morte se aproximar antes que o tratamento digno chegue. Para aquelas que conseguem acesso às consultas, aos exames mais modernos e eficientes e/ou cirurgias, nem sempre o sofrimento acaba; a violência governamental pode continuar pela falta do tratamento apropriado. Os medicamentos indicados como mais eficazes não constam da lista do SUS… e, por questões burocráticas de agências governamentais, também não são garantidas pelos planos de saúde. Aponta-se, ainda, o cuidado negligente em hospitais e centros de saúde, seja por insuficiência de espaço físico e de recursos humanos, seja por seu despreparo profissional e humanitário ou pela ineficiência geral da gestão do sistema.

Mas a saúde não é a única vulnerabilidade das pessoas idosas. Envelhecimento digno pressupõe também opções de educação continuada, de esporte, de cultura, de lazer, com as quais as pessoas se mantêm ativas física e intelectualmente. Embora legalmente previstas no Estatuto do Idoso, as estruturas municipais nem sempre as disponibilizam.

E o que dizer das aposentadorias que têm seu valor aquisitivo real diminuído mês a mês, além de estarem atreladas a um sistema sob constante ameaça de ruir, causando sofrimento e insegurança contínua às pessoas idosas? E da falta de amparo social geral ao idoso pobre, que não tem moradia digna, não tem família em condições de ampará-lo e não tem Instituições de acolhimento onde possa se abrigar dignamente?  Muitos idosos conseguem judicializar os direitos sonegados, mas essas ações acabam sendo julgadas anos após a morte dos interessados que deles se beneficiariam.

Paralelamente a tantas precariedades que o Estado apresenta e tenta justificar, os idosos (em especial os que sobrevivem com o BPC) são diariamente violentados e humilhados pelas notícias que apontam os altos salários de muitos servidores públicos, em especial do legislativo e do judiciário, e por aquelas que anunciam os ‘roubos” cometidos pela corrupção da qual, não raro, participa um lado sujo da mão do poder público.  Os recursos que faltaram para garantir quantidade suficiente de médicos e enfermeiros no SUS vão parar no patrimônio de gestores corruptos.

Especialmente neste momento da Pandemia, qual o atendimento especial oferecido aos idosos? Àqueles que vivem em instituições foram baixados protocolos de cuidados, em algum nível atendidos. Pelo esforço dos responsáveis dessas instituições e pouca ou nenhuma ajuda governamental, tivemos até exemplos de excelência nos cuidados biopsicossocial em algumas ILPIs. Do caixa do Fundo Nacional do Idoso, embora com atraso, algum recurso extra minorou as dificuldades de algumas ILPIs sem fins lucrativos.  Mas os idosos institucionalizados representam uma parcela mínima da população idosa. Em Florianópolis, por exemplo, são mais de 83 mil idosos, conforme o DATASUS, e menos de 800 idosos institucionalizados 1. Menos de 1%. E desses, 66,75% vivem em ILPIs pagas pelo próprio idoso ou por seus familiares, sem qualquer ajuda governamental 2.

As políticas públicas de atendimento às pessoas mais necessitadas falharam na Pandemia. Na política de Assistência Social, vimos muitos CRAS e CREAS fecharem suas portas e atenderem apenas virtualmente a quem os procurasse. De repente, sem antes uma política de inclusão digital ampla, o idoso necessitado ficou à mercê de familiares, vizinhos ou voluntários para acessar os órgãos municipais em busca de socorro.  Excetuando-se os hospitais e seus bravos trabalhadores, até mesmo Postos de Saúde tiveram horários reduzidos de atendimento.  Foi justo o afastamento de funcionários pertencentes a grupos de risco (eles próprios idosos ou acometidos de doenças crônicas), mas foi injusta a falta de substituição desses agentes e a diminuição dos serviços públicos, em especial do SUS e do SUAS, aos quais recorre a população mais fragilizada, incluindo a população idosa. De repente, da noite pro dia, os atendimentos passaram a ser virtuais, e as pessoas idosas mais vulneráveis, sem acesso físico ou intelectual às modernas tecnologias de comunicação, foram mais desassistidas que antes da Pandemia. Via de regra, são as organizações voluntárias que adentram às comunidades mais carentes – onde o governo não chega – para levar ajuda.

E nos hospitais, em situação de escassez de meios, qual a triste escolha que se abate sobre os profissionais da saúde no que concerne a quem será oferecida a chance de viver? Com falta de leitos e de insumos necessários às UTIs, não havia como fazer milagres: sobreviveu quem pôde. Em Santa Catarina, até 31/05/2021, foram registrados 15.354 óbitos. Desses, 11.063 (72,05%) eram pessoas com 60 anos ou mais 3.

“Ah! Elas morreriam mais cedo ou mais tarde por conta de suas comorbidades…”. Todos nós morreremos mais cedo ou mais tarde pelo simples fato de estarmos vivos. Mas ninguém quer ter sua vida encurtada por conta da falta de políticas públicas de nossos desgovernos… De hoje e de ontem também.

Há, pois, uma violência de origem estrutural que não pode ser “naturalizada”. Desapercebida. Negada. Trata-se de uma violência que vemos ocorrer todos os dias, como se fosse natural, e que – lamentavelmente – já nem nos causa indignação.

Temos de continuar a denunciar, ao Disque 100, ao Ministério Público, à Polícia Civil (especializada, onde existir), aos Conselhos dos Idosos todas as violências domésticas e comunitárias: a violência física, a econômica ou patrimonial, a psicológica, as negligências, ocorridas nas famílias ou nas comunidades. Mas fiquemos atentos – e vamos denunciar também – as violências cometidas pelo poder público sempre que sonega direitos previstos na Política Nacional do Idoso, no Estatuto do Idoso ou em outras legislações esparsas que regulam direitos e garantias de vida digna a todas as pessoas idosas.

Fonte: Foto de Thom Gonzalez no Pexels

 

 

[1] MPSC e a COVID -19, ILPIs, Painel – https://mpsc.mp.br/ilpis/painel-covid19-ilpis

[2] Relatório do CMI/Florianópolis, setembro 2020 (não publicado).

[3] Painel de Casos Covid 19 SC  – http://www.coronavirus.sc.gov.br/boletins  Dentre os 15.354 óbitos registrados no  Estado até 31/05/2021, 11.063 foram de pessoas  com 60  anos ou mais, o que equivale a 72,05%.

 


Sobre a autora:

Maria Joana Barni Zucco

Advogada (30.863 OAB/SC), estudiosa do Direito da Pessoa Idosa, e membro da Associação Nacional de Gerontologia de Santa Catarina – ANG SC.

E-mail: [email protected]

 

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